quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Eu sou a coisa coisamente.

Os consumidores estão cada vez mais se tornando promotores de mercadorias e as próprias mercadorias que promovem.

Zygmunt Bauman é, sem dúvida, um dos mais instigantes intelectuais da atualidade, do alto dos seus 93 anos e vastíssimo repertório sociológico, filosófico e literário. Reverenciado em toda parte, da academia à lista dos mais vendidos, o sociólogo polonês é um dos maiores críticos do mundo contemporâneo. No livro Vida para Consumo: A Transformação das Pessoas em Mercadorias, ele avalia aspectos desconcertantes do que costuma denominar sociedade de consumidores. Entre eles, ganha destaque a necessidade incessante dos seres humanos estarem se renovando o tempo inteiro a fim de aumentarem seu prazo de validade. Segundo Bauman, as pessoas precisam se submeter a um constante remodelamento para que não fiquem obsoletas rapidamente, tal qual os produtos que compraram há pouco e logo serão percebidos como old fashioned.

Essa sutil e penetrante transformação dos consumidores em mercadoria é a verdade oculta da sociedade de consumo, seu segredo mais profundo e bem guardado, provoca o pensador. Bauman pondera que é o fato de sermos uma mercadoria de consumo que nos torna membros autênticos dessa sociedade. Tornar-se uma mercadoria vendável e conseguir continuar sendo-a por muito tempo é uma das maiores preocupações do mundo contemporâneo. Em entrevista recente a um veículo brasileiro de grande audiência, o autor foi questionado pelo repórter sobre qual seria o seu maior medo. Era de se imaginar que a resposta de Bauman seria, por motivos óbvios, o medo da morte. Entretanto, sua afirmação foi um reflexo dos seus estudos: lúcida e surpreendente ao mesmo tempo. “O meu maior medo é ficar obsoleto”, categorizou, sinalizando uma perfeita sintonia entre o que ele pensa e o que ele professa para seus leitores.

“Ser membro da sociedade de consumidores é uma tarefa assustadora, um esforço interminável e difícil. O medo de não conseguir conformar-se foi posto de lado pelo medo da inadequação, mas nem por isso se tornou menos apavorante.”, reflete Zygmunt Bauman. Os consultórios médicos, que tratam os males do corpo e as doenças da alma, estão cada vez mais lotados de pacientes sobrecarregados de tarefas, angústias e medos. Esses medos, aparentemente individuais, parecem ser comuns, em maior ou menor escala, à vida liquida apontada pelo sociólogo em alguns de seus outros livros, igualmente inquietantes, como Vida Líquida, Amor Líquido e Modernidade Líquida.

A quantidade crescente de sites pessoais na internet indica a coisificação crescente das pessoas e a necessidade de colocá-las numa vitrine, ou melhor, num ponto de venda on-line, pronto para ser acessado de qualquer lugar do mundo, como produtos disponíveis a um clique do mouse. A consolidação das revistas voltadas para a formação de executivos e a popularização dos cursos superiores no Brasil também apontam para a aceleração dessas tendências no nosso país. Isso sem falar dos novos financiamentos para cursos de pós-graduação, com 36 meses para pagar, lançados no último mês, a fim aumentar a remodelagem dos brasileiros e ampliar sua competitividade.

A globalização dos mercados e o advento das mídias digitais aceleram a reificação das pessoas no mundo atual. Faz lembrar o poeta Carlos Drummmond de Andrade, no poema Eu, Etiqueta, uma reflexão sobre a era industrial, que ganhou novos contornos e se intensificou na sociedade dos consumidores:

“E cada gesto, cada olhar,/Cada vinco da roupa/Sou gravado de forma universal,/ Saio da estamparia, não de casa,/Da vitrine me tiram, recolocam,/Objeto pulsante mas objeto/Que se oferece como signo de outros/ Objetos estáticos, tarifados./Por me ostentar assim, tão orgulhoso/ De ser não eu, mar artigo industrial,/Peço que meu nome retifiquem./Já não me convém o título de homem./Meu nome nome é Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente.”

Izabela Domingues é publicitária e jornalista. Coordenadora da Pós-Graduação em Estudos do Consumo das Faculdades Barros Melo/ Aeso (PE). izabeladom@hotmail.com

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